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segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Guerra a quatro patas: ritmos adultos e melodias infantis

É guerra dentro da gente. Já com quatro patas a engatinhar tentar o impossível. A simplicidade navega pelas bordas da embarcação. Criança tem tema, enredo, estrutura e linguagem. Literatura e poesia, canção e ruído, verso e ritmo. A natureza exótica num conceito antigo. Um veículo da arte sem estar a serviço da arte. Uma atitude anti-dirigista irrompendo o decreto de funções, utilizações e modelos de comportamentos.

Deixar o sentimento deslizar pela boca. Facilitar a metamorfose ambulante do mundo. Chorar quando necessário, gargalhar quando conveniente e mostrar os caninos quando preciso. Não deixar habitar vergonhas e indiferenças, não se acorrentar em malícias ou falsos sentimentos. Brigar, pular, berrar, esquecer, desafiar, propor, deleitar. É ser infantil e não infantilista. Abusar da sinceridade. Achar o mundo perfeito. Quando não é! Não é? Não! Quando pode ser! Será?

De certa forma, ser criança é se libertar da superfície chamada “razão”, que impõe regras e reprime o desejo de mergulhar profundo. É fazer, ir, mais além que uma receita de bolo. É se lambuzar, desconstruir e testar idéias, deslizar pelo novo e interiorizar sensações, não compactuar verdades absolutas, voltar a experimentar sabores que estavam esquecidos, ter essência, medo. Mas, ser criança não é ser imaturo, nem nostálgico. É adaptar alguns itens do cardápio da infância com desejos e obrigações e não deixar que a estaca da responsabilidade censure o instinto da liberdade. É harmonizar atitudes e conceitos.

As obrigações das fases posteriores (ou o estresse, mesmo) atraem outros mundos, alguns, paralelos. Problemas, maus-humores, rancores. Falta de sinceridade com a gente mesmo. Engasga como fosse uma azeitona presa esperando uma pancada nas costas para cuspi-la. Parece aquele cara da propaganda eleitoral que tem uma abelhinha no ouvido. Só faltava começar o texto dizendo: faz quatro anos que uma azeitona entalou na minha garganta...

Criança transcende qualquer conceito, apesar dessas palavras. Dia comemorativo é só para homenagear, ou reforçar o esforço de libertá-la, como no meu caso. E ainda tem gente que detesta que criança seja criança.

(Crônica publicada na revista Premier - Edição nº 24 - Outubro 2008)
http://www.revistapremier.com.br/pagina_nova.asp?id=386&trava=Crônica

terça-feira, 7 de outubro de 2008

A complexidade do público e privado

Difícil de conceituar, ou até mesmo, diferenciar o “Público” do “Privado”. Poderia sair pelas ruas de qualquer cidade, olhar a igreja, praça, prefeitura, posto de saúde, hospital, centro histórico e nominá-los como um ou outro. A questão estaca no peito algo mais profundo. O surgimento de novos espaços privados, semi-privados, semi-públicos, público-privado — shopping, espaços de lazer de condomínios privados, casa de recepções, espaços virtuais, órgãos públicos com administração privada — de certa forma assumiram uma função acolhedora da vida urbana. A nova configuração possibilitou novas interações sociais. Será que de certa forma decretamos a morte de alguns espaços públicos urbanos? A praça, abandonada, pode ser considerada morta por alguns. Para outros a praça não morre, está ali. Pode sofrer mutações, transformar-se. assim como, os conceitos ocidentais que levamos dela, a luta contra a lógica dominante dos sistemas.
A confusão entre o público e privado remete a uma das principais causas do caos urbano. É uma mistura de fatores históricos com a tendência neoliberal de privatização dos espaços. A mistura das antigas definições com a complexidade de teorizar as mudanças. Uma longa corrente presa ao pé. Os motivos pessoais sintetizam o entendimento de que são sempre mais importantes que os coletivos, alimentando uma espécie de barreira invisível, um narcisismo massivo. A vida privada está sendo trazida ao contexto público. Os espaços públicos onde as pessoas discutiam a gestão de assuntos de interesses comuns se transformaram em espaços publicitários. A paisagem pública passou a ser midiática. Os cidadãos cumprem seu papel: consomem informações.
Definir que tudo que não público é privado ou que tudo que não é privado é público é convencional. Porém, real – talvez a primeira definição que venha a cabeça. Num mesmo ambiente, dois ambientes. As entranhas da discussão parecem estar em delimitar as fronteiras. O público remete a algo de contexto social, coletivo, espaço onde ocorrem as relações políticas, contrasteando, o privado, com sua particularidade-privada-desigual: o shopping, publicizando o espaço e ao mesmo tempo vendendo seus serviços – todos podem estar, nem todos podem consumir. Na internet essa divisão parece não existir. Ao mesmo tempo em que o indivíduo fica privado no quarto, em seu computador, fica exposto ao público, seja através de comunidades, sites, blogs, provocando uma comunicação ampla, flexível. É através dela também que aumentou o espaço comercial, deixando muitas dúvidas sobre seus processos para a inclusão social.
A reformulação dos conceitos desses espaços, ou, um conceito novo, deverá surgir como necessidade para que sejam subtraídas algumas perguntas crônicas. A flecha da intensidade das transformações urbana, a meu ver, criou esses espaços contemporâneos, hoje também resultado das tecnologias da informação. Essas mudanças parecem que remetem o deslocamento dos espaços aos sujeitos humanos, e não mais dos sujeitos humanos aos espaços. Esse mesmo sujeito humano, que tinha vida privada, coloca em xeque agora seu caráter privado (sexo, família, preferências pessoais), e não mais somente sua performance pública. Parece ser absorvido pelo mercado e não mais pelo estado, família ou religião.

(Texto impresso na edição nº 70 do Jornal Experimental Primeira Pauta)