Ela saiu sem dar tchau. Correu pelas ruas e roubou doces das bocas de crianças. Furou filas dos bancos e pulou roletas na estação. Correu pelas calçadas derrubando latas de lixo e espantou os pombos da praça. Transou no elevador com um estranho e cuspiu do alto dos prédios. Recitou besteiras ao pé do ouvido e gozou sementes de ópio. Foi esposa e amante, mãe e filha. Comprou roupas, carros e acessórios banais. Renegou seu passado e acertou suas contas. Lavou e centrifugou roupas sujas de verbo e lama. Leu aquele antigo livro e mastigou suas páginas. Saiu daquela razão ridícula e mergulhou em várias profundidades na imensidão de um lago. Dormiu de toca. Tomou café adormecido e inseriu doses letais de anti-ansiedade. Vomitou poesias baratas em becos imundos. Musicou seus dramas e teceu suas redes de prazer. Andou sobre brasas e queimou seus clichês. Elaborou coquetéis, levitando repentinamente, ressuscitando ao terceiro dia. Descumpriu os 10 mandamentos em pactos capitais. Absorveu o fluído: dentro pra fora e fora pra dentro. Vestiu-se de rato, gato, elefante, macaco, lobo, cordeiro, cachorro, coruja, urubu, e não pagou mais sapos nem micos-leões-dourados. Subiu no ponto mais alto e gritou. Ali, voou. Atirou-se por mais de cinco eternos segundos. Planou além do ar, todavia, libertou-se apenas de algumas prisões. O que ela alimentava não poderia ser explicado, medido e nem entendido. Em alguma forma que ela estava, sentiu saudades. Sentiu-se presa. Perguntou-se então: sou livre?
(Texto elaborado para a 7ª edição do Sarau Palavras Acústicas)